SÓCIOS
Outubro 2024

Caso clínico do mês – Outubro 2024

Título: Tratamento de fístula anal complexa: ablação com laser + retalho de avanço

Autores:
Diogo Sousa1, Carlos Leichsenring1, Miguel tomé1, Énio Afonso1, Guilherme Neto2
1 Serviço de Cirurgia Geral Hospital Cuf Descobertas
2 Serviço de Imagiologia Hospital Cuf Descobertas

Caso Clínico:
Homem de 42 anos com história de espondilite anquilosante medicado com etoricoxib, que apresentava tumefacção peritesticular com cerca de 3 meses de evolução. Negava febre, traumatismo, queixas urinárias ou alterações do trânsito intestinal, rectorragias ou hematoquézias. Ao exame físico identificou-se tumefacção com cerca de 2m com ligeira flutuação na base do escroto e um orifício cutâneo anterior ao ânus (Figura 1), compatível com orifício de fístula.

Como realizaria a avaliação/estadiamento da fístula?

  1. Clínico e toque rectal
  2. Ecografia endorectal
  3. Fistulografia
  4. TC pélvica
  5. RM pélvica


Realizou ecografia endorectal que mostrou “colecção líquida de características aparentemente não puras com conteúdo gasoso na raíz do escroto, parecendo comunicar com trajeto fistuloso que se consegue seguir parcialmente, podendo estar relacionado com patologia perianal.”

Realizou RM pélvica que mostrou trajecto fistuloso complexo com “origem na margem anterior do canal anal com orifício mucoso às 6h com bifurcação a cerca de 2cm do orifício interno, dirigindo-se anteriormente até atingir o escroto numa extensao de 9.5cm com calibre de 6mm; segundo trajeto na bifurcação mencionada no sentido vertical inferior com cerca de 8cm com terminação cega e de características fibróticas. Fístula transesfincteriana alta envolvendo o esfíncter interno em mais de 30%” (Figuras 2-4).


Perante estes achados e o diagnóstico de fístula transesfincteriana, qual seria a abordagem a adoptar?

  1. Fistulotomia
  2. Colocação de seton cortante
  3. Ablação por laser
  4. Retalho de avanço
  5. LIFT


Dado tratar-se de fístula complexa com envolvimento do esfíncter interno em mais de 30% (portanto com risco de incontinência), decidiu-se tratamento por cirurgia conservadora de esfíncteres. De entre as diversas opções terapêuticas, pelo facto de se tratar de uma fístula com trajecto longo e de calibre fino, optou-se pela técnica de ablação a laser associada a um encerramento do orifício interno com retalho de avanço. 

Realizou-se drenagem da colecção escrotal com desbridamento da loca, curetagem de todo o trajeto da fístula e lavagem com H2O2 (Figuras 5 - 7). Abordagem do orifício interno com desbridamento e exposição das fibras musculares do esfíncter interno (Figura 8) e reparação esfincteriana com fio multifilamentar absorvível 4/0 (Figura 9). Ablação a laser de ambos os trajetos fistulosos com energia 10-12w, comprimento de onda de 1470nm, com aplicação intermitente a 1mm/s (Figura 10). Encerramento do orifício interno com retalho de avanço cutâneo (Figura 11).



 Registou-se boa evolução no pós-operatório, apresentando cicatrização completa 1 mês após a cirurgia e sem recidiva a 1 ano de seguimento.

Discussão:
    As fístulas anoretais são soluções de continuidade epitelizadas entre o canal anal ou o recto e os tecidos moles perineais.1,2,3 Podem ter múltiplas etiologias, mas a maior parte tem origem criptoglandular, estando frequentemente associadas a história prévia de abcesso anorectal.1,2
    Com uma prevalência de 1.69 casos/10000 habitantes na Europa, as fístulas anoretais causam morbilidade significativa e constituem um desafio terapêutico importante, traduzindo um impacto importante na qualidade de vida do doente.1

    A classificação descrita por Parks em 1976 é a mais utilizada, mas não descreve o grau de envolvimento do aparelho esfincteriano pela fístula, não permitindo prever o risco de incontinência. A descrição da percentagem de esfíncter envolvido bem como a avaliação da presença de factores de risco (fístula recidivada, sexo feminino, multiparidade, disfunção concomitante do pavimento pélvico, radioterapia prévia) permite avaliar o risco de incontinência fecal e, assim, optar pelo tratamento com uma técnica conservadora de esfíncteres. A integração da classificação de Parks com o contexto clínico e restantes características das fístulas, divide-as em simples e complexas (Tabela 1).2,4 

As fístulas simples são habitualmente tratadas por fistulotomia/fistulectomia, não indicado nas fístulas complexas pelo elevado risco de incontinência. O tratamento destas apoia-se em diversas técnicas que têm por objectivo evitar a recidiva e conservar o aparelho esfincteriano, mantendo a continência (são exemplos o LIFT – Ligation of Intersphincteric Fistula Tract, VAAFT – Video-Assisted Anal Fistula Treatment, LAFT – Laser Ablation of Fistula Tract, Plug, clip OTS – Over The Scope, PRP – Platelet Rich Plasma, células estaminais mesenquimatosas, matriz de colagénio, seton de biomaterial por engenharia de tecidos, entre outras).2,4,5,6 


O estudo imagiológico pré-operatório com ecografia endoanal (fístulas simples) e/ou ressonância magnética é imperioso para o diagnóstico e estadiamento da fístula, bem como para a decisão sobre o tratamento adequado. A ressonância magnética é o exame de primeira linha nos casos de fístulas complexas, sendo a comunicação entre o cirurgião e o radiologista crítica para a interpretação de resultados e decisão sobre futuras opções terapêuticas. A utilização de software com reconstrução 3D é um recurso valioso para a visualização e mapeamento tridimensional dos trajetos fistulosos (Figura 12), permitindo um planeamento cirúrgico adequado.

O tratamento por ablação a laser é uma técnica recente que se baseia na destruição do epitélio do lumen da fístula, promovendo o encerramento do trajecto e a regeneração tecidular e conservando o aparelho esfincteriano. A técnica apresenta resultados equivalentes a outras opções conservadoras de esfíncteres em diversas séries, nomeadamente na taxa de cicatrização completa (>70%) e nas taxas de sucesso a curto e longo prazo (64-81%), com registo de alterações ligeiras de continência apenas em doentes submetidos a mais de um tratamento (1.7-9.6%2,7). Num estudo prospetivo com 69 doentes tratados com ablação por laser foi demonstrado que esta técnica é particularmente efetiva em casos de fístula transesfincteriana alta (60% de cura)8. 

Estes dados referem-se a diversas séries com diferenças na abordagem do orifício interno. Enquanto alguns grupos não encerram o orifício interno, outros reportaram o seu encerramento por diferentes técnicas (encerramento directo, retalho mucoso ou retalho cutâneo). Esta heterogeneidade de procedimentos influencia os resultados, uma vez que a decisão de não abordagem do orifício interno e a técnica escolhida para o seu encerramento influenciam o sucesso do tratamento da fístula.

A seleção dos doentes  para ablação a laser deve ser criteriosa (fístulas complexas, trajectos longos e estreitos, orifício interno estreito)9. As diretrizes da Sociedade Europeia de Coloproctologia4 referem que a ablação por laser pode ser considerada em doentes com fístula anal alta e pode ser repetida nos casos de falha do primeiro tratamento (com ressalva para os possíveis efeitos cumulativos do laser no complexo esfincteriano). Não deve ser considerada em fístulas simples.

O caso clínico apresentado refere-se a doente com fístula complexa, transesfincteriana alta (envolvimento esfíncter externo > 30%), de calibre fino e trajeto longo, pelo que se optou pelo tratamento com ablação a laser. A nossa equipa advoga o encerramento do orifício interno por rotina, com recurso a encerramento do plano ao nível do esfíncter interno e retalho de avanço mucoso ou cutâneo. Sendo uma técnica recente com resultados promissores, são necessários mais estudos prospetivos comparativos para consolidar a sua eficácia e otimizar a seleção de doentes com benefício nesta abordagem, sendo actualmente uma opção terapêutica no tratamento de doentes selecionados com fístulas anoretais complexas.


Figura 12. Software Cella Medical Solutions – Exemplo de reconstrução 3D de trajeto fistuloso complexo (azul)


Bibliografia:
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