SÓCIOS
Maio 2025

Caso clínico do mês – Maio 2025
 
Título: Síndrome de Currarino: Um Diagnóstico Raro na Idade Adulta

Autores: Rita Ribeiro Dias, Sara Castanheira Rodrigues, Alexandre Duarte, Silvestre Carneiro,
Serviço de Cirurgia Geral da ULS São João
 
Resumo: 
A Síndrome de Currarino (SC) é uma condição congénita rara, caracterizada pela tríade clássica de massa pré-sagrada, defeito ósseo do sacro e malformação anorretal. Apresenta-se o caso de um doente do sexo masculino, 49 anos, com antecedentes de imperfuração anal congénita e obstipação crónica. No decurso do estudo etiológico, os exames de imagem revelaram a presença de uma massa pré-sagrada e agenesia parcial do sacro. O diagnóstico de síndrome de Currarino foi estabelecido. O exame anatomo-patológico da biópsia da massa pré-sagrada revelou que a mesma se tratava de um tumor neuroendócrino bem diferenciado. O doente foi proposto para cirurgia. Intra-operatoriamente, concluiu-se que a massa pré-sagrada era indissociável do reto distal, tendo sido realizada uma amputação abdominoperineal, seguida de terapêutica adjuvante com análogos da somatostatina e, posteriormente, quimioterapia.
A apresentação deste caso reforça a importância de uma investigação cuidadosa em doentes com malformações anorretais e/ou defeitos sagrados, com vista à identificação precoce da SC.
 
Introdução: 
A SC é uma patologia congénita rara, com cerca de 300 casos descritos na literatura. Em mais de 80% dos casos, o diagnóstico é feito na infância. 
Esta síndrome está associada a mutações no gene MNX1, localizado no cromossoma 7. Contudo, nem todos os casos apresentam esta mutação, pelo que outros genes podem estar envolvidos. O padrão de hereditariedade é autossómico dominante, com fenótipo variável, podendo o espectro clínico variar desde formas assintomáticas até à expressão completa da tríade clássica: malformação anorretal, defeito ósseo sacro-coccígeo e massa pré-sagrada.
A origem embriológica da síndrome está relacionada com uma separação incompleta dos folhetos endodérmico e ectodérmico durante o desenvolvimento embrionário, resultando na persistência de uma ligação anómala entre o intestino primitivo e a medula espinhal, por falência da fusão vertebral anterior.
Na maioria dos casos, a massa pré-sagrada corresponde a um meningocelo sagrado anterior ou a um teratoma. Contudo, outras lesões descritas incluem hamartomas, tailgut cysts, tumores neuroendócrinos, lipomas, cistos epidermóides, cistos dermóides, cistos neuro-entéricos, leiomiossarcomas e duplicações retais. 
As malformações anorretais incluem estenose anal (com ou sem fístula), a anomalia mais frequentemente associada, atresia ou ectopia anal, imperfuração anal e anomalias da cloaca.
Podem também co-existir anomalias urológicas, como rim único congénito, hidronefrose, incontinência urinária, duplicação ureteral e alterações neurológicas como diminuição do controlo esfincteriano e défices motores nos membros inferiores. Alterações do ducto de Müller também podem estar presentes, condicionando útero bicórneo, septos vaginais, agenesia ou hipoplasia do útero e/ou vagina.
 
Caso Clínico:  
Apresentamos o caso de um doente do sexo masculino, 49 anos, referenciado à Consulta Externa de Cirurgia Geral por um quadro de obstipação crónica, com agravamento progressivo nos 12 meses anteriores. Referia episódios frequentes de até duas semanas com ausência de dejeções, sensação persistente de evacuação incompleta e necessidade de recurso regular a enemas de limpeza e laxantes em doses elevadas, sem sucesso terapêutico. Episodicamente, apresentava incontinência fecal, interpretada como de overflow.  No ano anterior, realizou 3 colonoscopias inconclusivas, por má preparação.
Antecedentes pessoais de imperfuração anal congénita, corrigida cirurgicamente no período neonatal.
Relativamente aos antecedentes familiares, o doente refere pai falecido com neoplasia maligna do cólon, irmão com espinha bífida e filha com diagnóstico de meningocelo e imperfuração anal.
Ao exame físico, o doente apresentava massa palpável na fossa ilíaca esquerda, sugestiva de cólon preenchido com fezes. Realizado toque retal com aparente diminuição do tónus esfincteriano e presença de fecaloma.
Foi solicitada defeco-ressonância, que revelou dilatação de 7 centímetros da ampola retal, ausência de esvaziamento retal durante as manobras defecatórias e volumosa formação expansiva no espaço pré-sagrado (8,5 × 7,4 × 7,2 centímetros), com limitações na avaliação da dinâmica defecatória devido à presença de volumoso fecaloma na ampola retal.
Figura 1: Imagens de defeco-ressonância, em sequência T2, corte axial (A) e sagital (B) mostrando a massa pré-sagrada.

Foi também efetuada uma tomografia computadorizada (TC) toraco-abdomino-pélvica, que identificou uma massa heterogénea hipervascular no espaço pré-sagrado (84 × 80 × 76 milímetros), com calcificações grosseiras e áreas de necrose, com aparente plano de clivagem das estruturas adjacentes, agenesia parcial do corpo do sacro à direita e múltiplas adenomegalias ilíacas (a maior com 13 milímetros). Massa sem aparente comunicação com o sistema nervoso central. Sem alterações na avaliação torácica.
Figura 2: Imagens de TC com evidência de agenesia parcial do corpo do sacro à direita (identificada com seta).

Optou-se por biópsia da massa pré-sagrada e o exame anatomopatológico foi compatível com tumor neuroendócrino bem diferenciado.
A tomografia por emissão de positrões com Ga68-DOTA-TOC revelou intensa hiperexpressão anómala de recetores da somatostatina na massa pré-sagrada, com envolvimento ganglionar na sua periferia e metastização medular e óssea.

Foi realizado doseamento de Cromogranina A sérica que se encontrava dentro dos limites da normalidade.
Após discussão em reunião multidisciplinar, foi decidida cirurgia para exérese da neoplasia pré-sagrada. Intra-operatoriamente, identificou-se um megacólon e dilatação do cólon sigmóide com > 10 centímetros de maior diâmetro, preenchidos por fezes duras e uma volumosa massa pré-sagrada sem plano de clivagem com o reto distal e com envolvimento esfincteriano.  O doente foi submetido a amputação abdominoperineal com excisão em bloco da peça cirúrgica, com esvaziamento ganglionar ilíaco e pélvico bilateral.
O período pós-operatório imediato foi complicado com episódio de retenção urinária, com necessidade de algaliação prolongada; parestesias do membro inferior esquerdo, nádegas e períneo bem como deiscência da ferida perineal. Estas situações foram abordadas conservadoramente, com evolução favorável. O doente teve alta ao 10.º dia pós-operatório.

O exame anatomopatológico confirmou tratar-se de um tumor neuroendócrino bem diferenciado, grau 2, localmente avançado, associado a lesão cística malformativa. Verificou-se metastização ganglionar (2/28 no mesorreto e 2/2 na região obturadora direita), invasão perineural e linfática, sem invasão venosa. A resseção cirúrgica foi R0.
O doente foi proposto para realização de tratamento adjuvante com análogos da somatostatina.
Aos 5 meses após cirurgia, realizou TC abdominopélvico que revelou progressão das lesões ósseas e metastização hepática e esplénica de novo. Por decisão do Grupo Oncológico, iniciou quimioterapia com FOLFOX, sendo posteriormente alterado o esquema para De Gramont. Por persistência das lesões metastáticas, com hiperexpressão dos recetores de somatostatina, suspendeu quimioterapia e reiniciou terapêutica com análogos da somatostatina.

5 anos após cirurgia, o doente mantém lesões metastáticas admitindo-se progressão sob quimioterapia, tendo sido alterada a linha de tratamento. O doente iniciou tratamento com PRRT (peptide receptor nucleotide therapy), com Lutécio, mantendo terapêutica com análogos da somatostatina.  De momento, o doente encontra-se assintomático.
 
Discussão: 
Dada a raridade da SC, sobretudo em adultos, não existem guidelines sobre qual o tratamento e seguimento mais adequados nestes casos. A abordagem terapêutica deve ser individualizada, tendo em consideração a gravidade da apresentação clínica, a qual habitualmente está relacionada com a expressão fenotípica da síndrome.

De acordo com a literatura, a lesão pré-sagrada deve ser ressecada na maioria dos casos, mesmo em doentes assintomáticos, permitindo evitar as complicações que podem estar associadas, como meningite e potencial transformação maligna, a qual ocorre em 1 a 2% dos casos.
A SC tem hereditariedade autossómica dominante, com baixa penetrância e elevada variabilidade fenotípica, pelo que o número de portadores da mutação do gene MNX1 está subestimada. Neste sentido, a realização de investigação e estudo cuidado dos doentes com malformações anorretais e/ou defeitos sagrados, ainda que isoladamente, assume especial importância no sentido de permitir diagnosticar e tratar adequadamente os casos de SC.

Conclusão:
Dada a raridade da síndrome de Currarino e a sua predominância em idade pediátrica, torna-se essencial manter um elevado índice de suspeição. Nos casos diagnosticados em adultos, a apresentação é frequentemente atípica, o que pode condicionar um atraso no diagnóstico e, desta forma, comprometer o prognóstico.
 
Referências:
1.        Hage P, Kseib C, Adem C, Chouairy CJ, Matta R. Atypical presentation of currarino syndrome: A case report. Int J Surg Case Rep; 2019.
2.        Dworschak GC, Reutter HM, Ludwig M. Currarino syndrome: a comprehensive genetic review of a rare congenital disorder. Vol. 16, Orphanet Journal of Rare Diseases. BioMed Central Ltd; 2021.
3.        Kassir R, Kaczmarek D. A late recognized Currarino syndrome in an adult revelead by an anal fistula. International Journal of Surgery Case Reports Vol 5, 2014.
4.        Kim HJ, Ho IG, Ihn K, Han SJ, Oh JT. Clinical Characteristics and Treatment of Currarino Syndrome: A Single Institutional Experience. Advances in Pediatric Surgery; 2020.
5.        Koizimi C, Fernandes M, Lopes L, Lobato FC, Leonardo SF et al. Sindrome de Currarino Associada ao Tailgut Cyst: Ressecção Abdômino-Sacral Cristiane Koizimi Martos Fernandes e Cols. Sindrome de Currarino Associada ao Tailgut Cyst: Ressecção Abdômino-Sacral Space that can be a Part of the Currarino Syndrome; 2007.
6.        Little TA, Compson KE, Hall K, Murdoch MJ, Neas KR et al. Currarino syndrome with two synchronous presacral teratomas. Journal of Pediatric Surgery Case Reports; 2018.