SÓCIOS
Maio 2024

Fistula colovaginal – o caso da rede perdida...

Autores: Pedro Botelho 1,2 , Sandra Carlos2, João Corte-Real2, Vítor Fernandes3 e Sérgio Sá4
1- Unidade de Patologia Colorectal - Unidade Local de Saúde de São José - Hospital Curry Cabral
2- Cirurgia Geral, CUF Almada e CUF Tejo
3- Gastroenterologia, CUF Almada
4- Imagiologia, CUF Tejo
 
 
Doente de sexo feminino de 69 anos, com antecedentes pessoais de hipertensão, hipotiroidismo e neoplasia de bexiga. Submetida a Cistectomia Radical com construção de neo-bexiga e conduto continente com reconstrução do tipo “Indiana pouch”, histerectomia total e sacrocolpopexia com prótese há cerca de 20 anos.

Por apresentar episódios de vaginites de repetição, recorreu à consulta de Ginecologia, onde foi medicamente tratada, não tendo sido identificadas alterações ao exame ginecológico. A doente negava alterações do trânsito intestinal ou perdas hemáticas do trato digestivo. Referia, no entanto, que na presença de fezes mais líquidas as queixas ginecológicas agravavam - nomeadamente corrimento com cheiro fétido. 

Foi solicitada tomografia computorizada (TC) pélvica que foi complementada por ressonância magnética (RMN) que relatam a passagem de contraste entre o cólon para a vagina e a presença de sinais indiretos de possível corpo estranho pélvico envolvendo essas estruturas – aspectos compatíveis com a hipótese de fistula colovaginal com origem em erosão por prótese de sacrocolpopexia.

Dado o diagnóstico provável de fístula colovaginal, a doente foi referenciada para Consulta de Cirurgia Colorretal. Ao exame físico ginecológico e retal não apresentava alterações.  A nível abdominal apresentava cicatriz mediana supra e infra-umbilical e orifício de urostomia com cerca de 1 cm paraumbilical direito, compatível com conduto continente que a doente cateterizava cerca de 5 a 6 vezes por dia de forma a esvaziar a neo-bexiga.
Foi requisitada e realizada colonoscopia que demonstrou a presença de orifício fistuloso já descrito, aproximadamente a 30 cm da margem anal, com a visualização de prótese que se projetava para dentro do lúmen intestinal através do mesmo. Durante a colonoscopia, foi efetuada tentativa de remoção da prótese por tração da mesma, sem sucesso.

 
  
Figura 1 e 2 - imagens de colonoscopia identificando corpo estranho endoluminal compatível com prótese de sacrocolpopexia anterior
 
Perante este diagnóstico, foi proposto tratamento cirúrgico que a doente aceitou e assinou consentimento informado após explicação da situação clínica, da cirurgia e seus riscos. A doente foi submetida abordagem cirúrgica em tempo cirúrgico único – tendo sido submetida, por laparotomia, a extensa lise de aderências com identificação e conservação da neo-bexiga (construída com o cego), identificação do trajeto fistuloso entre o cólon sigmoide e vagina e a sua reparação definitiva com sigmoidectomia e ressecção parcial da vagina.
            Dada a ausência de co-morbilidades significativas ou eventos intra-operatórios que o contraindicassem optou-se pela realização de anastomose primária, evitando uma reintervenção numa doente de alto risco cirúrgico dada a reconstrução urológica que apresentava.
            Após exploração macroscópica da peça cirúrgica, não se observou a presença de prótese residual endoluminal ou na cavidade pélvica. Acreditamos que tenha sido eliminada pelo reto após a preparação intestinal pré-operatória. O pós-operatório decorreu sem intercorrências. O exame anatomopatológico confirmou parede cólica com trajeto fistuloso revestido por epitélio pavimentoso estratificado e glandular de tipo cólico, erosionado, associado a lesões inflamatórias crónicas e supurativas.

Figura 3- evidência intraoperatória de fistula colovaginal

 
Figura 4 (A e B) - imagem de peça operatória com evidência de orificio fistuloso (A) e trajecto fistuloso excisado (B)

 
Discussão:

Uma fístula colovaginal (FCV) é uma comunicação anormal epitelizada entre o cólon e a vagina.1
As FCV podem causar sintomas angustiantes, semelhantes aos das fístulas retovaginais. As doentes geralmente apresentam a passagem de ar ou fezes pela vagina, que podem afetar significativamente a sua qualidade de vida.2 Em alguns casos, em que o calibre da fístula é diminuto, a clínica é mais frustre, o que pode dificultar o seu diagnóstico, como no caso apresentado em que a apresentação clínica era corrimento com cheiro fétido, associado a vaginites de repetição.

Quanto à etiologia das FCV, estudos publicados demonstraram que cerca de 75% das FCV são causadas por doença diverticular e que a neoplasia do cólon é a segunda causa mais comum, com uma frequência aproximada de 20%. Outras etiologias menos frequentes das FCV incluem: Doença de Chron, radioterapia, antecedentes de cirurgia pélvica ou presença de corpos estranhos, tal como as próteses usadas na sacrocolpopexia. Esta última etiologia é bastante rara, tendo sido relatado o primeiro caso reportado por A. Nicolson e D. Adeyemo em 2009.3 As FCV geralmente são observadas em doentes com histerectomia prévia, mas podem ocorrer em doentes com útero in situ.4

O diagnóstico de FCV é essencialmente baseado na apresentação clínica e confirmado por exame de imagem. Atualmente há pouco consenso na literatura sobre a modalidade de imagem gold-standard para a detecção de FCV.1  Segundo estudos, a TC pélvica apresenta uma sensibilidade de 94% para a detecção da FCV, para além de ajudar no planeamento cirúrgico e, por isso foi proposto como o exame de eleição para a identificação de FCV.5 Para esclarecer a etiologia das FCV é obrigatória a realização de Colonoscopia.

Alguns autores preconizam a realização de RM pélvica apenas em casos de fístulas complexas ou em contexto de estadiamento local de neoplasia do recto5. No caso apresentado, a doente realizou TC pélvica que foi complementada no mesmo dia por RMN que permitiu uma melhor caracterização do trajeto da fístula numa doente com cirurgia pélvica prévia. Realizou posteriormente colonoscopia que localizou a fístula e esclareceu a sua etiologia ao identificar a zona de erosão provocada pela rede utilizada na cirurgia prévia.

O tratamento das FCV é maioritariamente cirúrgico, mas pode ser desafiante devido ao processo inflamatório inerente que distorce os planos anatómicos, tornando a dissecção notoriamente difícil. Atualmente, não há consenso sobre a abordagem cirúrgica ideal para tratar as FCV.2

O tratamento cirúrgico pode envolver uma abordagem em vários tempos ou abordagem em tempo único com cirurgia de ressecção e anastomose primária.

A tradicional abordagem cirúrgica em três tempos (1-ressecção com colostomia – tipo Hartmann, 2-reconstrução do trânsito intestinal com anastomose e estoma de derivação, 3- encerramento do estoma de derivação) é raramente realizada nos dias que correm. A abordagem em dois tempos (1-ressecção com anastomose primária e estoma de derivação temporário; 2- encerramento de ileostomia posterior) tem sido adotada em doentes com múltiplas co-morbilidades ou onde existem preocupações com a segurança na anastomose primária6. No estudo retrospetivo de 52 doentes submetidos a tratamento cirúrgico de FCV por diverticulite, publicado na revista DISEASES OF THE COLON & RECTUM da American Society of Colon and Rectal Surgeons, os autores apresentam o protocolo da sua instituição para o uso seletivo de estoma de derivação para as FCV e outras fístulas diverticulares. O protocolo refere que deve ser realizado estoma de derivação em: doentes imunossuprimidos, cirurgia de urgência, doença do tecido conjuntivo ou alterações da cicatrização prévias, ou em casos de resultado positivo do teste de fuga anastomótica2.

Mais recentemente, com os avanços da cirurgia minimamente invasiva (laparoscopia e cirurgia assistida por robot), a morbilidade peri-operatória associada à abordagem cirúrgica em tempo único diminuiu bastante, já com evidências crescentes que apoiam a sua exequibilidade e segurança - motivos pelos quais se tem utilizado cada vez mais esta abordagem.

Neste caso a abordagem inicial foi laparoscópica, mas devido a existência de múltiplas aderências e dificuldade em identificar com segurança as estruturas envolvidas na reconstrução urológica previamente realizada, optou-se pela conversão em laparotomia mediana.
Optou-se pela abordagem em tempo cirúrgico único , tendo sido realizada ressecção e anastomose sem recurso a estoma de derivação, visto tratar-se de uma doente com comorbilidades pouco significativas, com bom estado nutricional, sem doença oncológica associada e não terem existido eventos intraoperatórios que o contraindicassem.

Após ressecção definitiva, as taxas de recorrência são baixas. Ainda assim, quando esta ocorre, a morbilidade é significativa, porque a reintervenção pode levar a problemas funcionais e, às vezes, a criação de ostomia permanente.
 
Conclusão
A incidência das FCV é baixa, no entanto os sintomas que causam são constrangedores e afetam a qualidade de vida das doentes, tornando fundamental que o cirurgião tenha conhecimento desta patologia e da sua gestão (diagnóstico e opções terapêuticas). Este caso demonstra as FCV como uma possível complicação após cirurgia ginecológica e destaca a complexidade da gestão das FCV.

As doentes com FCV são geralmente avaliadas por ginecologistas primeiro. O diagnóstico das FCV é clínico e confirmado por exames de imagem, como a TC. O seu tratamento é cirúrgico, e cada vez com maior evidência é seguro a realização de ressecção do segmento intestinal afetado, excisão da fístula e anastomose colorretal primária.

A abordagem multidisciplinar envolvendo uroginecologistas e cirurgiões colorretais é importante para otimizar o tratamento da doente e melhorar os seus resultados.
 
BIBLIOGRAFIA
  1. Wen Y, et al., Evaluating surgical management and outcomes of colovaginal fistulas, The American Journal of Surgery 2016; 213 - 3: 553-557
  2. DeLeon, et al., Diverticular Colovaginal Fistulas: What Factors Contribute to Successful Surgical Management?, Dis Colon Rectum 2019; 62: 1079–1084
  3. Nicolson,A; Adeyemo,D; Colovaginal fistula: A rare long-term complication of polypropylene mesh sacrocolpopexy, Journal of Obstetrics and Gynaecology, July 2009; 29(5): 444–454
  4. Hjern F, Goldberg SM, Johansson C, Parker SC, Mellgren A.; Management of diverticular fistulae to the female genital tract. Colorectal Dis. 2007;9:438–442
  5. Holroyd, D, et al., Colovaginal and colovesical fistulae: the diagnostic paradigm - Tech Coloproctol (2012) 16:119–126
  6. Cirocchi R, Arezzo A, Renzi C, et al.; Is laparoscopic surgery the best treatment in fistulas complicating diverticular disease of the sigmoid colon? A systematic review. Int J Surg. 2015;24(pt A):95–100