Caso clínico do mês – Julho/2025
Título:
Diverticulite aguda? Nem sempre...
Um caso de neoplasia do cólon com fistulização cutânea
Autores: Sara Catarino1, Inês Colaço2, Noel Carrilho1, Fernando Valério1, Jorge Pereira1
1 Serviço de Cirurgia Geral da Unidade Local de Saúde de Viseu Dão-Lafões
2 Serviço de Cirurgia Geral da Unidade Local de Saúde do Baixo Mondego
Caso Clínico:
Doente de 58 anos, sem antecedentes ou medicação crónica, ex-fumador, ECOG 0, que recorreu ao Serviço de Urgência por quadro de dor abdominal na FIE e febre, sem alterações do trânsito intestinal. Realizou estudo analítico que revelou elevação dos parâmetros inflamatórios (leucócitos 22.470, PCR 25 mg/dL) e TC que mostrou aspectos sugestivos de diverticulite aguda complicada de abcesso pericólico com 64x32 mm e envolvimento da parede abdominal (Fig.1) – Hinchey IB.
Fig 1 – TC abdomino-pélvica – diverticulite aguda com abcesso pericólico
Opções terapêuticas?
- Antibioterapia
- Antibioterapia + drenagem percutânea de abcesso
- Lavagem e drenagem laparoscópica
- Operação de Hartmann
- Ressecção cólica e anastomose primária
O doente foi admitido no internamento tendo realizado antibioterapia com piperacilina/tazobactam durante 7 dias e drenagem percutânea de abcesso guiada por ecografia. O exame bacteriológico revelou E.coli e Enterococcus faecium pelo que foi ajustada antibioterapia para gentamicina e metronidazol de acordo com TSA, que cumpriu durante mais 7 dias. Apresentou melhoria clínica e analítica, tendo realizado TC de controlo que mostrou resolução completa do abcesso. Foi removido o dreno e teve alta orientado para a consulta externa, com pedido de colonoscopia a ser realizada 6 a 8 semanas após a alta.
Dois meses depois, o doente é novamente admitido em internamento com novo episodio de diverticulite aguda complicada de abcesso com 75x28 mm, tendo sido realizada nova drenagem ecoguiada e antibioterapia. A TC de controlo mostrou resolução do abcesso tendo agora sido colocada a hipótese de processo neoplásico do cólon sigmóide. O doente teve alta com colonoscopia agendada, pedido de TC toraco-abdomino-pélvica de reavaliação e análises com marcadores tumorais.
A colonoscopia revelou lesão de aspecto neoplásico aos 30cm da margem anal, infranqueável (Fig 2), contudo as biópsias apenas mostraram displasia de baixo e alto grau.
Fig 2 – Colonoscopia com lesão suspeita do cólon sigmóide
As análises evidenciaram CEA e CA 19.9 com valores normais.
A TC toraco-abdomino-pélvica excluiu presença de lesões secundárias, contudo mostrou lesão do cólon sigmóide com crescimento significativo em relação a TC prévia, com uma massa tumoral com 12x8 cm, com invasão da parede abdominal (Fig 3).
Fig 3 – TC de estadiamento
Opções terapêuticas?
- Ressecção cólica com anastomose primária e ressecção da parede abdominal em bloco à QT adjuvante
- Operação de Hartmann e ressecção da parede abdominal em bloco à QT adjuvante
- Colostomia derivativa à QT paliativa
- Colostomia derivativa à QT primária à reavaliação imagiológica posterior
O caso foi discutido em reunião multidisciplinar e foi decidida confecção de colostomia derivativa e colocação de CTI para realização de QT primária, após realização de novas biópsias.
O doente foi então submetido a laparoscopia exploradora que não evidenciou metastização peritoneal e foi confeccionada colostomia derivativa assistida por laparoscopia. Foi igualmente colocado CTI. Pós-operatório decorreu sem intercorrências tendo tido alta clinicamente bem.
Realizada depois colonoscopia retrógrada pela estomia para realização de novas biópsias, contudo estas revelaram novamente displasia de alto grau.
O doente foi re-internado, cerca de um mês após a cirurgia, com uma celulite da parede abdominal e fistulização cutânea do processo neoplásico (Fig 4 e 5), sob antibioterapia.

Fig 4. TC com neoplasia com fistulização cutânea
Fig 5. Fistulização cutânea
Durante o internamento foi realizada biópsia da lesão cutânea que revelou adenocarcinoma compatível com primário cólico, baixa probabilidade de instabilidade de microssatélites, sem mutação nos genes KRAS, NRAS ou BRAF.
Ao longo deste período, o doente apresentou agravamento do estado geral, com anorexia e perda ponderal acentuada. Necessidade de múltiplas drenagens percutâneas e vários ciclos de antibioterapia. Instituída suplementação nutricional e reabilitação motora e cardio-respiratória. O caso foi novamente discutido em reunião multidisciplinar e foi decidido iniciar QT primária ainda durante o internamento dado o elevado risco infeccioso associado. Iniciou QT com FOLFOX, não tendo apresentado complicações de relevo, pelo que teve alta após o 2º ciclo, mantendo tratamentos em regime de ambulatório. Cumpriu 7 ciclos de FOLFOX + 5 ciclos de cetuximab, sem incidentes.
TC de reavaliação mostrou ausência de lesões secundárias e marcada redução das dimensões da lesão tumoral, ainda com trajecto fistuloso para a pele com cerca de 5 cm, sem colecções associadas (Fig 6).

Fig 6. TC de reavaliação após QT de conversão
Assim, foi decidido em reunião multidisciplinar por avançar com exploração cirúrgica.
O doente foi submetido a sigmoidectomia com excisão em bloco do trajecto fistuloso cutâneo e orquidectomia esquerda por invasão dos vasos gonadais, com manutenção da colostomia prévia. Realizada laparoplastia com prótese e retalho cutâneo de deslizamento (Fig 7). Pós-operatório complicado de evisceração com necessidade de re-intervenção com nova laparoplastia com prótese. Restante internamento sem incidentes.
Fig 7. Intra-operatório – neoplasia do cólon com invasão da parede abdominal
O exame histológico revelou adenocarcinoma do cólon com infiltração da parede abdominal e constituição de trajecto fistuloso, com invasão linfovascular e perineural, sem metástases nos 12 gânglios analisados, um depósito tumoral e margens livres. Portanto: ypT4b N1c LV+ PN+ R0.
Realizada QT adjuvante com 12 ciclos de FOLFOX.
O doente mantém-se em seguimento sem evidência, até ao momento, de recidiva loco-regional ou à distância, encontrando-se também a aguardar o restabelecimento da continuidade digestiva.
Discussão:
A diverticulite aguda é uma complicação da doença diverticular que ocorre em cerca de 5-15% dos doentes [1]. A TC é o exame imagiológico recomendado uma vez que permite não só o diagnóstico desta patologia, mas também a sua caracterização em diverticulite não complicada vs complicada. Contudo os achados descritos na TC podem também ser encontrados noutras entidades clínicas como as neoplasias colo-rectais [2]. O risco de carcinoma colo-rectal em doentes com diverticulite é de 1,9%, podendo variar de 1,3% em doentes com diverticulite não complicada e 7,9% na diverticulite complicada [3]. Assim, várias sociedades médicas internacionais recomendam, por rotina, a realização de colonoscopia 4-8 semanas após um episódio de diverticulite aguda [4-7], principalmente se complicada, em doentes com mais de 50 anos e sem colonoscopia prévia recente.
As neoplasias colo-rectais têm várias formas de apresentação, sendo a perfuração rara com uma incidência de 2,6-7,8% [8]. Pode ocorrer perfuração livre ou contida levando à formação de abcessos. A invasão directa de outros órgãos e formação de abcessos ou trajectos fistulosos nestas localizações, como a parede abdominal, é ainda mais rara ocorrendo em 0,3-4% dos doentes [8]. A abordagem destes casos é complexa e geralmente adaptada ao caso particular, não havendo recomendações específicas nas guidelines internacionais. A taxa de mortalidade associada a estas situações pode atingir os 25% [9].
A presença de abcessos e fistulas colo-cutâneas associada a uma neoplasia representa uma doença localmente avançada e pode levar a atrasos no tratamento oncológico adequado por quadros infecciosos recorrentes e de difícil controlo. Quando o quadro séptico não é passível de resolução, a cirurgia urgente poderá ser a única opção, contudo com resultados oncológicos nem sempre favoráveis. O papel da drenagem percutânea de abcessos neste contexto é controverso, pois, por um lado, pode levar ao sedimento de células neoplásicas no trajecto de drenagem [9], por outro lado, poderá ser o único método possível para a resolução do quadro séptico do doente, permitindo posteriormente o estadiamento da doença e tratamento adequado.
Nestes casos, o único tratamento potencialmente curativo é uma ressecção radical em bloco da neoplasia com a parede abdominal [9]. Contudo, estas cirurgias podem ser complexas, quer em termos de obter ressecções R0, quer em termos da necessidade de reconstrução da parede abdominal, com taxa de falência do encerramento cutâneo que pode atingir os 50% e com elevada morbimortalidade associada [8]. Assim, um tratamento faseado com QT primária pode contribuir na redução do tamanho tumoral, na diminuição das micrometástases e em facilitar uma ressecção R0 [10], apresentando, contudo, elevado risco de complicações infecciosas associadas à imunossupressão.
No caso clínico apresentado, os autores inicialmente realizaram uma drenagem percutânea no contexto de um abcesso de provável origem diverticular, que depois veio a revelar tratar-se de uma doença neoplásica com a formação de uma fistula colo-cutânea. Esta abordagem permitiu o controlo temporário do foco séptico e posterior estadiamento adequado do doente. Foi decidida uma abordagem multidisciplinar em etapas com confecção inicial de colostomia de modo a permitir um controlo mais definitivo do foco séptico, posterior tratamento oncodirigido com QT primária com diminuição significativa das dimensões tumorais o que facilitou a abordagem cirúrgica subsequente, permitindo uma cirurgia com intuito curativo com margens livres (ressecção R0).
Referências Bibliográficas:
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- Kircher MF, Rhea JT, Kihiczak D, Novelline RA. Frequency, sensitivity, and specificity of individual signs of diverticulitis on thin-section helical CT with colonic contrast material: experience with 312 cases. AJR Am J Roentgenol. 2002; 178: 1313–8.
- Meyer J, Orci LA, Combescure C, Balaphas A, Morel P, Buchs NC, et al. Risk of colorectal cancer in patients with acute diverticulitis: a systematic review and meta- analysis of observational studies. Clin Gastroenterol Hepatol. 2019; 17: 1448–56.
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- Basukala S, Thapa N, Rayamajhi BB, Basukala B, Mandal P, Karki B. A rare presentation of perforated carcinoma of colon as an anterior abdominal wall abscess-a case report and review of literature. J Surg Case Rep. 2021 Nov 8;2021(11):rjab344. doi: 10.1093/jscr/rjab344. PMID: 34760218; PMCID: PMC8575497
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