SÓCIOS
Julho 2023

CASO CLÍNICO DO MÊS

Título: Enemas de tacrolimus – uma terapêutica a considerar na proctite ulcerosa refractária

Autores: Cláudio Rodrigues, Paula Ministro

Caso Clínico:

Os autores apresentam o caso de uma mulher de 33 anos, sem antecedentes pessoais ou familiares relevantes, diagnosticada com proctite ulcerosa (Monreal E1) há 11 anos. Apesar da otimização da terapêutica convencional (messalazina oral e tópica) e sucessiva exclusão de causas secundárias, acaba por necessitar de pelo menos 3 ciclos de corticoterapia até 2016 para controlo dos sintomas proctológicos. Em 2016 inicia azatioprina, não tolerando uma dose superior a 100 mg por leucopenia. Não obstante uma melhoria parcial, persistia atividade clínica e endoscópica, pelo que inicia infliximab em agosto de 2018, em combinação com a azatioprina. Todavia, a doente desenvolveu infeções herpéticas genitais recorrentes e candidíase cutânea, que obrigam à interrupção daquela terapêutica em julho de 2019.

Posteriormente, é submetida a diferentes terapêuticas avançadas - vedolizumab, ustekinumab e tofacitinib, em 2019, 2020 e 2021, respectivamente – não se conseguindo alcançar remissão clínica ou endoscópica. Após discussão e consentimento informado da doente, e com a legal autorização da comissão de ética, volta a iniciar vedolizumab em associação com tacrolímus (off-label), 2mg em enema, em fevereiro de 2022. Volvidos três meses, a doente encontra-se em remissão clínica (score Mayo modificado pré-tratamento: 9; pós-tratamento: 0), biológica e endoscópica (figura 1, G). Subsequentemente, passou a cumprir manutenção com vedolizumab 300mg a cada 8 semanas e tacrolimus 1mg em enema, uma vez por dia.

Figura 1. – Atividade endoscópica sob as diferentes terapêuticas. A – sob 5-ASA (oral e tópico) apenas; B- sob azatioprina; C- sob infliximab e azatioprina; D – sob vedolizumab; E – sob ustekinumab; F – sob tofacitinib; G- sob vedolizumab e tacrolimus.

Figura 2- Evolução do valor de calprotectina

Discussão:

De acordo com os estudos epidemiológicos, 25-50%% dos doentes com Colite Ulcerosa apresentam-se com proctite ulcerosa (PU) no momento do diagnóstico [1]. Apesar de limitada ao reto, é uma doença frequentemente sintomática [2], responsável por sintomas perturbadores da qualidade de vida, como tenesmo, urgência, incontinência e retorragia [3]. A proctite refratária tem sido definida como a doença ativa com falência de resposta a corticosteróides orais em combinação com ácido 5-aminossalicílico, oral e rectal [4]. A proctite corticodependente, também deve ser incorporada no conceito da proctite refratária [4]. Em caso de refractariedade, é indispensável verificar a adesão à terapêutica e excluir fatores como a toma de dose inadequada de fármaco, infeções, como é o exemplo do Clostridioides difficile, Citomegalovirus ou das doenças sexualmente transmitidas.

Recentemente, Dubois e colegas mostraram que um terço dos doentes com PU são refratários às terapêuticas convencionais e necessitam de terapêutica com imunomoduladores ou agentes biológicos [5]. Porém, a evidência sobre a eficácia do tratamento com imunomoduladores, agentes biológicos ou pequenas moléculas na PU é restrita a alguns estudos observacionais. O tratamento da PU, especialmente na doença moderada a grave, permanece um desafio, uma vez que esta entidade é excluída da maioria dos ensaios clínicos randomizados com as novas terapêuticas para a colite ulcerosa [3].

O tacrolímus e a ciclosporina são inibidores clássicos da calcineurina, utilizados como agentes imunossupressores, inclusivamente na CU. A calcineurina ou proteína fosfatase 2B tem a capacidade de desfosforilar uma vasta gama de proteínas, de regular a expressão das interleucinas -2, -4 e interferão-g, modulando também a atividade de fatores de transcrição, como é o caso do NF-kB. Pensa-se que seja primariamente através da redução dos níveis destas citocinas que se consiga atingir a remissão clínica. Constata-se um número crescente de casos em que o tacrolímus rectal tem sido testado na PU refratária. Em 2017, um estudo multicêntrico, randomizado, duplamente-cego, controlado por placebo, comparou a eficácia de uma pomada rectal de tacrolimus (3 ml de tacrolimus a 0,5 mg/ml), administrada duas vezes por dia, durante 8 semanas, com um placebo, em pacientes (n = 21) com PU refratária. Em relação ao outcome primário, 73% (8/11) dos pacientes tratados com tacrolimus obtiveram resposta clínica, em comparação com 10% (1/10) dos pacientes tratados com placebo (p < 0.004). A remissão clínica e a cicatrização da mucosa foram alcançadas em 45% e 73% dos pacientes tratados com tacrolímus, em comparação com 0% e 10% dos pacientes tratados com placebo, respectivamente (p = 0,015 e p < 0,004) [6].

O tacrolimus é topicamente activo, com efeito local, hidrossolúvel e com uma toxicidade que parece ser mínima quando administrado por via rectal. Uma simples formulação em enema à base de água (60mL de água tépida) pode ser usada para administrar tacrolímus de forma tópica [7]. A evidência advinda do uso do tacrolímus noutros contextos de imunossupressão, sugere que os níveis séricos devem rondar os 10mg/L para se atingir a melhor eficácia (nível terapêutico entre 5-20mg/L) [8], embora níveis mais elevados potenciam, naturalmente, o risco de efeitos adversos comuns a esta classe, como a hipertensão arterial, náuseas, diarreia, alterações hematológicas e lesão renal [9]. No caso exposto, o nível sérico médio foi de 6mg/L (trough levels obtidos pelo menos 12 h após a última aplicação) e não se registaram quaisquer efeitos adversos.
O tacrolímus tópico deve ser considerado, portanto, como mais um recurso terapêutico nas proctites refratárias, muitas vezes difíceis de tratar, tal como exemplificado no caso clínico apresentado.

Referências:

1. Pineton de Chambrun, G., et al., The treatment of refractory ulcerative colitis. Best Pract Res Clin Gastroenterol, 2018. 32-33: p. 49-57.
2. Kiss, L.S. and P.L. Lakatos, Natural history of ulcerative colitis: current knowledge. Curr Drug Targets, 2011. 12(10): p. 1390-5.
3. Caron, B., et al., Efficacy of Pharmacological Agents for Ulcerative Proctitis: A Systematic Literature Review. J Crohns Colitis, 2022. 16(6): p. 922-930.
4. Harbord, M., et al., Third European Evidence-based Consensus on Diagnosis and Management of Ulcerative Colitis. Part 2: Current Management. J Crohns Colitis, 2017. 11(7): p. 769-784.
5. Dubois, E., et al., Long-term outcomes of patients with ulcerative proctitis: Analysis from a large referral centre cohort. United European Gastroenterol J, 2020. 8(8): p. 933-941.
6. Lawrance, I.C., et al., Efficacy of Rectal Tacrolimus for Induction Therapy in Patients With Resistant Ulcerative Proctitis. Clin Gastroenterol Hepatol, 2017. 15(8): p. 1248-1255.
7. Fehily, S.R., F.C. Martin, and M.A. Kamm, Simple water-based tacrolimus enemas for refractory proctitis. JGH Open, 2020. 4(4): p. 561-564.
8. Uberti, J.P., S. Cronin, and V. Ratanatharathorn, Optimum use of tacrolimus in the prophylaxis of graft versus host disease. BioDrugs, 1999. 11(5): p. 343-58.
9. Baumgart, D.C., et al., Tacrolimus is safe and effective in patients with severe steroid-refractory or steroid-dependent inflammatory bowel disease--a long-term follow-up. Am J Gastroenterol, 2006. 101(5): p. 1048-56.