SÓCIOS
Janeiro 2024

Caso Clínico do Mês Sociedade Portuguesa de Coloproctologia – Janeiro


Título: Cancro anal – a importância do rastreio em indivíduos de risco
Autores: Francisco Mendes1,2, Ana Raquel Gonçalves1,2,3, Rosa Coelho1,2,3, João Carlos Almeida4, André Gonçalves3,5, Guilherme Macedo1,2,3
1 – Serviço de Gastrenterologia, Centro Hospitalar Universitário São João
2 – WGO Gastroenterology and Hepatology Training Center
3 – Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
4 – Serviço de Anatomia Patológica, Centro Hospitalar Universitário São João
5 – Serviço de Cirurgia Geral, Centro Hospitalar Universitário São João

Resumo do caso
Doente 47 anos, male-sex-male (MSM), com diagnóstico de infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH) em 2000, sob terapêutica antirretrovírica e com carga viral sustentadamente não detetada. Antecedentes relevantes de carcinoma epidermoide in situ na nádega direita em 2015, submetido a tratamento com crioablação.
Em seguimento na consulta de Gastrenterologia – Proctologia desde essa data, estando a cumprir programa de rastreio de neoplasia do canal anal. Ao longo do seguimento a destacar diagnóstico de vários condilomas anais, submetidos a tratamento com árgon-plasma e crioterapia. Doente realizou anualmente citologia do canal anal, sem alterações celulares valorizáveis (Negative for intraepithelial lesion or malignancy – NILM).
Durante realização do exame proctológico de rotina foi detetada, na nádega direita lesão elevada, de conformação circular, eritematosa com cerca de 25mm de maior eixo. De salientar ainda despigmentação da região perianal em relação com terapêutica (crioterapia) prévia de condilomas perianais (Figura 1).

 

 Figura 1 – Lesão perianal localizada na região nadegueira direita.

Que procedimento(s) consideraria realizar no presente caso?
A. Biopsia com pinça de macrobiópsias, TAC pulmonar e RMN pélvica  
B. Doseamento de CEA
C. Tomografia por Emissão de Positrões (PET)
D. Todos os anteriores 
Foram realizadas biópsias da lesão descrita, com recurso a pinça de macro-biópsia (baby-tischler). O resultado anatomopatológico revelou a presença de carcinoma epidermóide in situ sem achados inequívocos de invasão.
Para estadiamento locorregional foi realizado exame físico sem adenopatias palpáveis e a ressonância magnética (RMN) pélvica, mostrou imagem de hipersinal com 21 milímetros de extensão longitudinal e 4 milímetros de espessura, sem restrição à difusão, na vertente medial direita do sulco internadegueiro. A tomografia computorizada de tórax não mostrou alterações.

Que tratamento proponha?
A. Crioterapia   
B. Radioterapia
C. Quimiorradioterapia
D. Cirurgia 
O caso foi discutido em Reunião de Grupo Oncológico, tendo o doente sido proposto para excisão cirúrgica da lesão. O doente foi submetido a resseção cirúrgica, com resseção de lesão ulcerada na nádega direita, com confeção de retalho de avanço e libertação da fáscia. O pós-operatório foi complicado com deiscência de sutura cirúrgica, com boa evolução após com cuidados de penso (figura 2).

Figura 2 – Evolução de ferida cirúrgica após excisão de carcinoma epidermoide.

O resultado anatomopatológico revelou a existência de lesão plana, esbranquiçada, com 2 centímetros de maior eixo e área nodular central com 4 milímetros de maior eixo. Área nodular com extenso carcinoma epidermóide in situ com invasão focal da derme papilar, onde se verifica infiltrado inflamatório linfocitário. Margens de resseção negativas (com 2 milímetros de distância à margem mais próxima).

Figura 3 – Carcinoma epidermoide invasor em pele com carcinoma epidermoide in situ. Na biópsia excisional da lesão observa-se invasão da derme superficial (A) por carcinoma epidermoide constituído por queratinócitos com atipia acentuada, mitoses atípicas e queratinização (B). Na periferia identifica-se epiderme com paraqueratose e displasia em toda a espessura (carcinoma epidermoide in situ) (C).
 
O caso foi discutido em Reunião de Grupo Oncológico, tendo sido decidida estratégia de vigilância. O doente mantém vigilância de lesões displásicas do canal anal e da região perianal em consulta regular de Proctologia, apresentando citologia negativa para malignidade ou lesão intraepitelial e sem evidência atual ao exame físico de lesão residual ou recidiva de carcinoma epidermóide (Figura 3).

Figura 4 – Inspeção da região nadegueira a demonstrar cicatriz de excisão cirúrgica de carcinoma epidermoide, sem lesão residual ou recidiva.

Discussão do caso

A incidência de cancro anal tem vindo a aumentar ao longo dos últimos anos, sendo a infeção por vírus do papiloma humano (HPV) um fator essencial na maioria dos casos de carcinoma epidermóide, não só no canal anal, mas também da pele ou orofaringe (1, 2). O risco de neoplasia aumenta significativamente na presença de infeção VIH, elevado número de parceiros sexuais e presença de condilomas anogenitais. Por este motivo, a população MSM LWH (MSM living with HIV) constitui-se como um dos principais grupos de risco para desenvolvimento de carcinoma epidermóide associado a HPV. 

O rastreio de cancro anal envolve a deteção de lesões precursoras na zona de transição anal, nomeadamente lesões escamosas intraepiteliais de baixo (LSIL) e alto grau (HSIL), tendo por base os conhecimentos sobre a sua carcinogénese(3).  Recentemente, o estudo ANCHOR demonstrou que o tratamento de HSIL anal reduziu o risco de progressão para cancro anal em MSMLWH(1). Apesar da ausência de critérios bem definidos para a idade de início de rastreio, sugere-se o seu início aos 25 anos para doentes imunocomprometidos e aos 40 anos em doentes imunocompetentes(4, 5). 

O rastreio tem por base a realização de citologia anal, e na presença de resultados alterados, é recomendada a realização de anuscopia de alta resolução com aplicação de soluções de ácido acético e lugol. No presente caso existe um antecedente relevante de carcinoma epidermóide in situ da região perianal submetido a tratamento por crioablação, que atualmente não tem evidência científica a comprovar a sua eficácia terapêutica.

De facto, é reconhecido que a infeção pelo HPV está associada a um aumento do risco de carcinoma epidermóide em várias localizações, incluindo a região perianal (6). Assim, o caso clínico descrito comprova a importância do rastreio não apenas de lesões displásicas do canal anal, mas de uma avaliação sistemática e cuidada de toda a região perianal, o que permitiu a deteção precoce de uma lesão assintomática.

O estadiamento locorregional desta neoplasia foi realizado com recurso a RMN pélvica e TAC toráx, que não identificou qualquer outro foco de lesão. A opção por tratamento cirúrgico no cancro anal e região perianal está recomendada no caso de lesões superficiais com uma extensão horizontal inferior a 7 milímetros (7). O presente caso ilustra um componente de carcinoma epidermóide in situ com 4 milímetros de maior eixo e margens negativas, sendo neste contexto adequada uma estratégia de vigilância em consulta externa.

Finalmente, a estratégia de vigilância após tratamento de carcinoma epidermóide nesta população ainda não está claramente validada na literatura, contudo preconiza-se a realização de citologia do canal anal e uma adequada inspeção da região perianal, complementada com realização de anuscopia de alta resolução se evidência de alterações celulares na citologia.

Em conclusão, o presente caso ilustra o elevado risco neoplásico dos doentes MSMLWH. Adicionalmente, reforça a importância da manutenção do rastreio de lesões displásicas através de citologia do canal anal e anuscopia, com uma adequada inspeção da região perianal.

Referências
 
1.         Palefsky JM, Lee JY, Jay N, et al. Treatment of Anal High-Grade Squamous Intraepithelial Lesions to Prevent Anal Cancer. N Engl J Med 2022;386:2273-2282.
2.         Siegel RL, Miller KD, Wagle NS, et al. Cancer statistics, 2023. CA Cancer J Clin 2023;73:17-48.
3.         Darragh TM, Colgan TJ, Thomas Cox J, et al. The Lower Anogenital Squamous Terminology Standardization project for HPV-associated lesions: background and consensus recommendations from the College of American Pathologists and the American Society for Colposcopy and Cervical Pathology. Int J Gynecol Pathol 2013;32:76-115.
4.         Goldie SJ, Kuntz KM, Weinstein MC, et al. The clinical effectiveness and cost-effectiveness of screening for anal squamous intraepithelial lesions in homosexual and bisexual HIV-positive men. JAMA 1999;281:1822-9.
5.         Goldie SJ, Kuntz KM, Weinstein MC, et al. Cost-effectiveness of screening for anal squamous intraepithelial lesions and anal cancer in human immunodeficiency virus-negative homosexual and bisexual men. Am J Med 2000;108:634-41.
6.         Gormley RH, Kovarik CL. Human papillomavirus-related genital disease in the immunocompromised host: Part I. J Am Acad Dermatol 2012;66:867 e1-14; quiz 881-2.
7.         Benson AB, Venook AP, Al-Hawary MM, et al. Anal Carcinoma, Version 2.2023, NCCN Clinical Practice Guidelines in Oncology. J Natl Compr Canc Netw 2023;21:653-677.