SÓCIOS
Janeiro 2023

CASO CLÍNICO DO MÊS

Distúrbios eosinofílicos com envolvimento gastrointestinal: Um desafio diagnóstico.

Andreia Guimarães1; Ana Célia Caetano1; Filomena Barreto2; Ângela Rodrigues1; Raquel Gonçalves1

1Serviço de Gastrenterologia – Hospital de Braga

2Laboratório de Anatomia Patológica, LAP/Unilabs, Porto


Mulher de 80 anos com antecedentes de bronquiectasias, polipose nasal e rinossinusite crónica, recorreu ao serviço de urgência por dejeções líquidas, cerca de 10 por dia, sem sangue ou muco, associadas a dor abdominal, enfartamento pós-prandial e perda ponderal estimada em 6 Kg, com um mês de evolução.

O estudo analítico demonstrava apenas eosinofilia periférica (10,400/µL eosinófilos, 51,4% do total de leucócitos). No internamento, o estudo complementar demostrou serologias víricas e parasitárias negativas.  A análise microbiológica e parasitológica das fezes foi negativa. A serologia para anti-transglutaminase, antigénio de clostridioides e autoimunidade foram também negativas. Os níveis de imunoglublina E encontravam-se aumentados. O painel Phadiatop não mostrou alterações. Realizou tomografia axial computadorizada toraco-abdominal sendo de destacar bronquectasias dispersas pelo parênquima pulmonar e micronodularidades no lobo superior e grande cissura à esquerda, e ainda hepatomegalia e espessamento da ampola retal e porção distal do cólon sigmóide. Para melhor esclarecimento foi realizada endoscopia digestiva alta que não apresentou alterações e retossigmoidoscopia que revelou mucosa colorretal com ponteado esbranquiçado milimétrico, algumas erosões dispersas e úlcera com 20 mm no reto distal (Figuras 1 e 2), biopsadas. A avaliação histológica apresentava alterações inflamatórias com predomínio de polimorfonucleares eosinófilos (>50 por campo de grande ampliação) (Figura 3). O ecocardiograma transtorácico era normal. Por queixas de parestesias e disestesias dos membros inferiores foi pedido estudo electromiográfico que não revelou alterações. A doente foi avaliada por Otorrinolaringologia por rinorreia prurulenta, sendo constatada à observação da cavidade nasal polipose bilateral, perfuração septal e rinorreia purulenta bilateral. Foi realizada biópsia dos cornetos nasais cuja análise histológica demonstrou córion edemaciado e infiltrado inflamatório linfo-plasmocitário disperso, com participação de polimorfonucleares eosinófilos, associado a áreas erosionadas do epitélio, rodeando glândulas com membrana espessada; não apresentava granulomas, folículos linfóides ou necrose fibrinóide.

Ainda durante o internamento, a doente desenvolveu lesões maculares eritematosas e pruriginosas na região sagrada e face interna das coxas.

Realizou imunofenotipagem do sangue periférico que mostrou acentuada eosinofilia de eosinófilos maduros, e estudo medular com mielograma que demonstrou hiperplasia mielóide com predomínio eosinófilico, sem presença de blastos ou outras alterações. Não foram identificadas anomalias citogenéticas na análise cromossómica. 

Após revisão dos dados clínicos da doente constatou-se que a eosinofilia periférica precedia o início das queixas gastrointestinais em meses.

Assim, por eosinofilia periférica persistente e aparente envolvimento multiorgânico iniciou prednisolona 40 mg/dia, em esquema de redução progressiva, apresentando melhoria clínica e analítica com resolução completa da eosinofilia periférica. Realizada retossigmoidoscopia de reavaliação, cerca de 6 meses depois, que revelou cicatrização completa da mucosa cólon-rectal. 

Figura 1 e 2. Retossigmoidoscopia realizada a demonstrar mucosa colorretal com ponteado esbranquiçado milimétrico e algumas erosões dispersas (Figura 1) e úlcera com 20 mm no reto distal (Figura 2).

Figura 3. Alterações inflamatórias com predomínio de polimorfonucleares eosinófilos (>50/campo).
 
Qual o diagnóstico mais provável?
  • Gastroenterite eosinofílica.
  • Síndrome hipereosinofílica idiopática.
  • Parasitose.
  • Leucemia eosinofílica crónica.
  • Colite eosinofílica.
 
A síndrome hipereosinófilica idiopática é uma entidade rara que acomete, sobretudo, os sistemas cardiovascular, neurológico, respiratório e pele. Pode envolver o sistema digestivo, numa percentagem variável de casos. As principais características que a distinguem do envolvimento eosinofílico do trato gastrointestinal de forma isolada, seja na forma de gastrite, colite ou gastroenterite, é a existência de hipereosinofilia marcada e o envolvimento multiorgânico. Os critérios de diagnóstico iniciais pressuponham a existência de uma hipereosinofilia periférica (>1500 eosinofilos/ µL) persistente (>6 meses) associada a lesão de órgão alvo, sendo que atualmente estes critérios permitem que seja estabelecido o diagnóstico com um tempo de evolução de doença inferior, de forma a não atrasar o início da terapêutica.
A modalidade terapêutica de primeira linha é a corticoterapia, sendo que outras opções incluem os inibidores da tirosina-cinase e citotóxicos. O reconhecimento e instituição precoce do tratamento adequado permite melhorar a sobrevida e qualidade de vida destes doentes.  
 
Referencias bibliográficas
  1. Ramirez G, Yacoub M-R, Ripa M, et al. Eosinophils from Physiology to Disease: A Comprehensive Review. Biomed Res. Int. 2018; 28.
  2. Leru P, Anton V, Muntean I, et al. Follow-Up of a Rare Case of Eosinophilic Gastroenteritis Associated with Persistent Blood Eosinophilia and Multiple Food Allergies. Diagnostics. 2022; 12:1381.
  3. Kumar A, Haider A, Siddiqa A. Organ-Specific Hypereosinophilic Syndrome Presenting as Eosinophilic Gastroenteritis. Cureus. 2022; 13(6): e16021.
  4. Khalid F, Holguin F. Idiopathic Hypereosinophilic Syndrome in an Elderly Female: A Case Report. Am J Case Rep. 2019; 20:381-384.
  5. Shomali W, Gotlib J. World Health Organization-defined eosinophilic disorders: 2019 update on diagnosis, risk stratification, and management. 2019; 94(10): 1149-1167.
  6. Helbig G, Klion A. Hypereosinophilic syndromes - An enigmatic group of disorders with an intriguing clinical spectrum and challenging treatment. 2021; 49: 100809.