SÓCIOS
Abril 2025

CASO CLÍNICO DO MÊS 

Úlcera do cólon – Uma etiologia inesperada

Inês Abreu Marques 1,2,3 Pedro Campelo 1,2,3 Claúdia Macedo 1,2,3 João Pacheco 4 José Cotter 1,2,3
1 - Serviço de Gastrenterologia, Unidade Local de Saúde do Alto Ave, Guimarães, Portugal;
2 - Life and Health Sciences Research Institute (ICVS), Escola de Medicina, Universidade do Minho, Braga, Portugal;
3 - ICVS/3B's – PT Government Associate Laboratory, Braga/Guimarães, Portugal
4 - Serviço de Anatomia Patológica, Unidade Local de Saúde do Alto Ave, Guimarães, Portugal;

CASO CLÍNICO
Apresenta-se o caso de uma doente de 95 anos, parcialmente dependente para as atividades de vida diária, com antecedentes pessoais de dislipidemia, glaucoma e internamento recente por fratura trocantérica intervencionada cirurgicamente. Durante o internamento em ortopedia, desenvolveu uma lesão renal aguda associada a hipercaliemia de difícil correção. Por este motivo, iniciou terapêutica com resina permutadora de iões (sulfonato de poliestireno de sódio, 30 g/dia), com estabilização dos níveis de potássio e melhoria da função renal.

Cinco dias após a alta, regressou ao serviço de urgência por hematoquézias com um dia de evolução, associado a dor abdominal difusa e vómitos alimentares.  Ao exame físico, encontrava-se hemodinamicamente estável, apirética e com dor abdominal generalizada à palpação profunda, sem sinais de irritação peritoneal. O toque retal revelou apenas vestígios de sangue na luva, sem outras alterações. Analiticamente, apresentava anemia normocítica e normocrómica (Hb 10,2 g/dL), sem descida significativa da hemoglobina face a análises prévias, e sem alterações hidroeletrolíticas ou da função renal.

A colonoscopia revelou, no cólon ascendente médio, uma úlcera extensa (cerca de 35 mm), de fundo esbranquiçado, a ocupar aproximadamente metade da circunferência luminal, a qual foi biopsada (Figura 1). Não foram evidenciadas outras alterações da mucosa ou da distensibilidade dos restantes segmentos cólicos.


Figura 1. Cólon ascendente.

O exame histológico mostrou tecido ulcerado com áreas de granulação e abundantes células inflamatórias polimórficas, entre as quais se identificaram células gigantes multinucleadas do tipo corpo estranho. Em relação com o tecido de granulação e estas células gigantes, observou-se material cristalino irregular, de contornos angulosos e de padrão em mosaico de estrias retangulares regularmente espaçadas de tipo “escama de peixe” (fish scale pattern). Este material apresentava coloração púrpura com hematoxilina-eosina, rosada com PAS e enegrecida com Ziehl-Neelsen. Não foram identificados microabcessos crípticos, granulomas epitelioides, displasia ou alterações sugestivas de malignidade (Figura 2). O estudo imuno-histoquímico com CK8/18, CD68 e CD31 corroborou os aspetos acima descritos, e excluiu a expressão de citomegalovírus.

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Figura 2. (A) Área de tecido de granulação compatível com ulceração; note-se a mucosa colorrectal adjacente. Nesta baixa ampliação salientam-se cristais irregulares associados ao tecido de granulação. (H&E, 40x). (B) Os cristais têm um contorno angular caraterístico e um padrão de “escama de peixe”; são roxos na coloração H&E. Um dos cristais está associado a uma célula multinucleada gigante de corpo estranho, assinalada pela seta azul (H&E, 400x). (C) Os cristais são “hot pink” na coloração de periodic acid-Schiff (PAS) (coloração PAS, 400x). (D) Em colorações para microorganismos álcool-ácido resistentes, os cristais são negros (coloração de Ziehl-Neelsen, 400x).

No enquadramento clínico, os dados histológicos foram compatíveis com colite induzida por resina permutadora de iões. Foi suspensa a administração do fármaco, sem recorrência de novos episódios de hematoquézia e resolução das restantes queixas. A doente teve alta para o domicílio, mantendo estabilidade clínica e analítica.
 
DISCUSSÃO
 
As resinas permutadoras de iões, como o sulfonato de poliestireno de sódio, são frequentemente utilizadas no tratamento da hipercaliemia. Este fármaco atua no trato gastrointestinal, onde promove a excreção de potássio e inibe a sua reabsorção no lúmen intestinal.1 Apesar da sua eficácia, estão descritos casos raros de colite induzida por estas resinas, complicação que pode evoluir para ulceração extensa, necrose, perfuração ou hemorragia digestiva.2

A fisiopatologia destas lesões não está totalmente esclarecida, podendo envolver toxicidade direta da resina sobre a mucosa intestinal, associado a fatores como hipoperfusão e resposta inflamatória local exacerbada. O uso concomitante de sorbitol, anteriormente associado a necrose intestinal, não é necessário para que surjam lesões significativas.2,3

Embora o cólon seja o local mais frequentemente afetado, estão descritos casos na literatura com envolvimento de outros segmentos do trato gastrointestinal. A colite induzida por resinas permutadoras de iões parece ocorrer preferencialmente em grupos de maior vulnerabilidade, como idosos, transplantados, doentes com doença renal e em contexto pós-operatório. A morbimortalidade associada a esta complicação também parece ser mais elevada neste grupo de doentes.2,3 No caso reportado, a doente apresentava vários fatores de risco como a idade e os antecedentes recentes de cirurgia ortopédica e de lesão renal aguda.4

Clinicamente, os doentes podem apresentar dor abdominal, hematoquézias, diarreia ou, menos frequentemente, náuseas e vómitos. O diagnóstico é corroborado por achados histológicos característicos, nomeadamente a presença de material cristalino com padrão em “escama de peixe”, observado em associação com células gigantes multinucleadas e infiltrado inflamatório polimórfico. Este padrão é considerado altamente sugestivo e está presente na maioria dos casos de colite induzida por sulfonato de poliestireno de sódio, permitindo uma forte correlação entre os achados endoscópicos, histológicos e o contexto clínico.2,4,5 Os diagnósticos diferenciais incluem colite isquémica, colite infeciosa (nomeadamente por CMV), colite induzida por outros fármacos ou doença inflamatória intestinal, os quais devem ser excluídos com base na apresentação clínica e no estudo histopatológico.
 
O tratamento consiste na suspensão imediata do fármaco e, em casos com maior severidade, pode ser necessária intervenção cirúrgica. Tal não se verificou neste caso, dada a evolução favorável após interrupção da resina permutadora de iões. A doente manteve estabilidade clínica e não voltou a apresentar episódios de hematoquézia após suspensão do fármaco.4,5
 
Este caso destaca-se pela raridade desta complicação e pela importância de vigilância clínica no uso destes fármacos, sobretudo em populações de risco. Na avaliação de hemorragia digestiva baixa em doentes expostos a resinas permutadoras de iões e com fatores de risco, esta hipótese de diagnóstico deve ser equacionada, visto que o reconhecimento precoce é importante para evicção de complicações graves.
 
 
REFERÊNCIAS

  1. Rahman, S., & Rachana Marathi. (2023, July 3). Sodium Polystyrene Sulfonate. Nih.gov; StatPearls Publishing.
  2. Harel Z, Harel S, Shah PS, Wald R, Perl J, Bell CM. Gastrointestinal adverse events with sodium polystyrene sulfonate (Kayexalate) use: a systematic review. Am J Med. 2013 Mar;126(3):264.e9-24. doi: 10.1016/j.amjmed.2012.08.016. Epub 2013 Jan 12. PMID: 23321430 e Lopez-Saez B, Casalots A, Ballesteros E, Brunet-Mas E. Ischemic colitis due to Kayexalate crystals. Gastroenterol Hepatol. 2024 Apr;47(4):391-392. English, Spanish. doi: 10.1016/j.gastrohep.2023.11.005. Epub 2023 Nov 23. PMID: 38007155.);
  3. Yuan, C. M., Nee, R., Little, D. J., & Abbott, K. C. (2013). Incidence of sodium polystyrene sulfonate-associated colonic necrosis. The American Journal of Medicine, 126(9), e13.
  4. Noel, J. A., Bota, S. E., Petrcich, W., Garg, A. X., Carrero, J. J., Harel, Z., Tangri, N., Clark, E. G., Komenda, P., & Sood, M. M. (2019). Risk of Hospitalization for Serious Adverse Gastrointestinal Events Associated With Sodium Polystyrene Sulfonate Use in Patients of Advanced Age. JAMA Internal Medicine, 179(8), 1025.
  5. Aver, G. P., Ribeiro, G. F., Vinícius Remus Ballotin, Souza, F., Bigarella, L. G., Riva, F., Brambilla, E., & Soldera, J. (2023). Comprehensive analysis of sodium polystyrene sulfonate-induced colitis: A systematic review. World Journal of Meta-Analysis, 11(7), 351–367.