SÓCIOS
Abril 2023

CASO CLÍNICO DO MÊS

Título: Endometriose Profunda – Abordagem Cirúrgica Colorectal
Autores: Carlos Leichsenring1, Rui Viana2, João Colaço2, Catarina Vasconcelos 3, José Correia Neves1
1 Serviço de Cirurgia Geral Hospital Cuf Descobertas
2 Serviço de Ginecologia Hospital Cuf Descobertas / Unidade Endometriose
3 Serviço de Imagiologia Hospital Cuf Tejo
 
Caso Clínico:
 
Mulher, 41 anos, sem antecedentes pessoais ou familiares relevantes. Recorre à consulta de Cirurgia Geral por quadro de astenia e rectorragia intermitente com 3 meses de evolução, que associa ao período menstrual. Refere, desde há 5 anos, quadro de dor pélvica tipo moinha, intermitente e que apenas cede parcialmente à terapêutica com AINEs. Refere também, dispareunia profunda 8/10. Tentativa de gravidez com FIV há 3 anos, sem sucesso.

Nega alterações do trânsito intestinal, sintomas constitucionais ou outros. Está medicada apenas com anticoncepcional oral desde há 5 anos. Tem desejo de engravidar.
Ao exame proctológico: tumefacção dolorosa, regular, na face anterior do recto aos 8cm. O exame ginecológico revela nódulo com cerca de 3cm no fundo de saco vaginal, doloroso à palpação e mobilidade uterina diminuída e dolorosa.

Sem alterações analíticas.

Realiza colonoscopia (Figura 1) que demonstra “procidência aos 10cm da margem anal de aspecto subepitelial, ocupando 1/3 da circunferência parietal, com pequena ulceração central, sugestivos de envolvimento transmural rectal alto”.
           
As biópsias foram compatíveis com envolvimento intestinal por endometriose profunda.
 
Realizou RMN pélvica (Figura2):
. Apagamento do espaço recto-vaginal com aderência fibrocicatricial com a parede anterior do recto, a 8cm da margem anal, com retracção da parede anterior do recto, com espessamento em placa por 24mm com uma espessura de 10mm;
. Espessamento retrocervical irregular e espiculado desde o tórus uterino, envolvendo o septo rectovaginal e ligamentos uterosagrados;
 
Tendo em conta as prioridades no plano de tratamentos:

  1. A doente não tem indicação para cirurgia e deverá manter terapêutica hormonal anticoncepcional;
  2. A opção cirúrgica deverá apenas ser considerada se a doente estiver sintomática;
  3. A ressecção anterior do recto (RAR) é obrigatória uma vez que as outras opções cirúrgicas não são válidas neste caso;
  4. É pouco provável que um “shaving” da lesão rectal permita obter uma ressecção completa;
  5. Em caso de RAR deve ser realizada uma excisão total do mesorecto;

 
Foi submetida a cirurgia por via laparoscópica (Figura 3):

- Adesiólise e ureterólise bilateral;
- Excisão de focos de endometriose profunda e peritoneal a nível pélvico e goteiras cólicas;
- Isolamento de nódulo da parede rectal e septo recto-vaginal com cerca de 2cm com ressecção segmentar tipo “sleeve” rectal com recurso a calibrador rectal e endoGIA® 60+45mm com reforço da sutura com monofilamento absorvível;
O pós-operatório decorreu sem intercorrências.

 Figura 1 - Procidência aos 10cm da margem anal de aspecto subepitelial, ocupando 1/3 da circunferência parietal, com pequena ulceração central, sugestivos de envolvimento transmural rectal alto.

 

Figura 2 - Apagamento do espaço recto-vaginal com aderência fibrocicatricial com a parede anterior do recto, a 8cm da margem anal, com retracção da parede anterior do recto, com espessamento em placa por 24mm com uma espessura de 10mm;

Figura 3 – Cirurgia – Ressecção transvaginal com “stapler”.


Discussão:

A endometriose é uma doença benigna definida pela presença de células endometriais fora da cavidade uterina e afecta cerca de 12% das mulheres em idade reprodutora. A endometriose profunda define-se pela invasão subepitelial das lesões excedendo os 5mm de profundidade e está associada a grande impacto na QoL pelo potencial para dor pélvica crónica.  É a causa mais frequente de infertilidade feminina.

No caso descrito, demonstra-se envolvimento intestinal típico e que ocorre em 10% das mulheres afectadas pela doença: nódulo com >1cm localizado ao compartimento posterior, envolvendo o recto alto e septo recto-vaginal. O envolvimento rectal e sigmoideu representam 90% dos casos de doença intestinal. A sintomatologia ocorre por menstruação “extra-uterina” com inflamação associada e posterior fibrose com retracção / fixação dos órgãos pélvicos.

A história natural da doença não é completamente compreendida, mas, tipicamente, as lesões de endometriose profunda progridem lentamente.
 Classicamente, o diagnóstico é tardio dada a inespecificidade dos sintomas e a baixa predisposição dos clínicos para o diagnóstico da doença.
No caso desta doente, a rectorragia fazia parte do quadro inicial, algo pouco frequente mesmo no envolvimento transmural.

O estadiamento da doença é obtido com recurso preferencial a RMN pélvica pela sua elevada sensibilidade (88%) e especificidade (98%) com um PPV de 95%.  No caso descrito, são descritos achados tipicamente associados ao envolvimento intestinal: envolvimento dos ligamentos uterosagrados e do torus uterino.

A decisão sobre cirurgia é considerada caso a caso e deve ter em conta a idade da doente, gravidade dos sintomas e desejo de gravidez. No caso de envolvimento intestinal, a excisão completa da doença está associada a elevada eficácia no controlo da dor e no aumento das taxas de gravidez nos 2 anos seguintes à cirurgia. A abordagem minimamente invasiva por laparoscopia ou robótica é o Gold Standard.
No entanto, dado tratar-se de uma doença benigna e em doentes jovens, a preservação de função e redução de complicações deve ser prioritária na estratégia de tratamento cirúrgico.

A opção do tipo de ressecção intestinal a realizar deverá ser, sempre que possível, o mais conservador possível, uma vez que a taxa de complicações (deiscência, fistula recto-vaginal, abcesso pélvico, colostomia derivativa) aumenta com procedimentos mais complexos, nomeadamente a RAR. No caso clínico descrito, a doente não apresentava critérios tipicamente associados a necessidade de RAR: envolvimento multifocal extenso, estenose >50% ou envolvimento >50% da circunferência intestinal. Desta forma, foi possível realizar uma ressecção discoide com recurso a calibrador rectal e a sutura mecânica por via transvaginal, permitindo preservar função defecatória e minimizar risco de complicações.
 
Referências Bibliográficas:

Working Group of ESGE. Recommendations for the surgical treatment of endometriosis. Facts Views Vis Obgyn, 2019, 11 (4): 269-297.
Darici E, Salama M, Bokor A et al. Different segmental resection techniques and postoperative complications in patients with colorectal endometriosis: a systematic review. Acta Obstet Gynecol Scand 2022; 101:705-718.
Habib N, Centini G, Lazzeri L et al. Bowel endometriosis: current perspectives on diagnosis and treatment. International Journal of Women’s Health 2020; 12 35-47
Ferrero S et al. Bowel Resection for intestinal Endometriosis. Best Practice and Research Clinical Obstetrics & Gynaecology, vol 71, Mar 2021, 114-128
Bendifallah S et al. Surgical Outcomes after Colorectal Surgery for Endometriosis: Systematic Review and Meta-Analysis. Journal of Minimally Invasive Gynaecology vol 28, n3, Aug 2020.